quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

Nem mais!

"Um péssimo serviço a Portugal e à Europa

A declaração do ministro dos Negócios Estrangeiros sobre a polémica dos cartoons presta um péssimo serviço à Europa e cobre Portugal de vergonha

Ontem, o ministro dos Negócios Estrangeiros emitiu uma declaração lamentável que não beneficia Portugal, nem a Europa, nem a convivência entre povos e crenças. Alguns excertos: "Portugal lamenta a publicação de desenhos e/ou caricaturas que ofendem as crenças ou a sensibilidade religiosa dos povos muçulmanos." Os povos muçulmanos pediram a Portugal alguma coisa? Não. Mas o MNE achou que devia dá-la. Daí a lamentação. Mais adiante, num esforço de pedagogia de um primarismo que brada aos céus, explica que "a liberdade de expressão" tem como "principal limite o dever de respeitar a liberdade e direitos dos outros", destacando "o direito de ver respeitados os símbolos fundamentais da religião que professa". Para quem tivesse dúvidas do que está em causa, o MNE especifica que "para os católicos esses símbolos são as figuras de Cristo e da Sua Mãe, a Virgem Maria", e "para os muçulmanos um dos principais símbolos [aqui houve alguma preguiça em procurar outros] é a figura do Profeta Maomé". Pergunta-se: os tão polémicos cartoons terão posto em causa a liberdade de alguém a não ser a dos seus autores, agora ameaçados de morte por quem é e continua a ser livre não só de professar a religião que quer, como se arroga ainda o direito de ameaçar e matar em nome dela? É óbvio que não. Então o que pretende o MNE com este comunicado, que inclusive recorre a Abraão para considerar "lamentável" o que se passou "em alguns países europeus"? Pretende que não se confunda "liberdade" com "licenciosidade" e apela, ainda que em surdina, a uma condenação dos tais países e, claro, a uma futura acção censória para que mais nenhuma religião se queixe (repare-se que em nenhum ponto do comunicado se refere a iniciativa rigorosamente privada das caricaturas, nem se condena ou sequer se lamenta a violenta ofensiva de fanáticos islâmicos a pretexto dos cartoons).Quando a Europa se confunde e divide numa coisa tão simples quanto a sua própria liberdade, o que se dispensa são comunicados destes, afectados por uma cegueira que toca as raias do absurdo. Porque, mais uma vez, embora muitos discursos acentuem o carácter de responsabilidade que a liberdade deverá ter, essa responsabilidade só existirá, se houver liberdade. Num clima de medo e censura só há medo e censura. Sabemos isso, por experiência própria, e também o saberão muitos muçulmanos que têm de suportar os ditames dos seus chefes. Por isso, a Europa devia entender-se quanto ao princípio da liberdade que professa antes de se dividir em autoflagelações dispensáveis e indecorosas. A Europa não tem que pedir desculpa por ser livre. A Dinamarca, país reconhecidamente generoso para com inúmeros países e causas (tal como os restantes países nórdicos), não tem que ser martirizada perante a pusilanimidade europeia, só porque há quem dê mais importância a uns desenhos do que à vida humana ou aos mais elementares direitos sociais. Quando se deu o 11 de Setembro, horrível para todos, levantaram-se no Ocidente milhões de vozes para dizer que os muçulmanos não deviam ser castigados ou perseguidos pelo acto hediondo de um grupo de fanáticos. Agora, por uns simples cartoons satíricos, os dinamarqueses são perseguidos por toda a parte, inclusive no seu próprio país, sem que no mundo árabe alguma voz se levante contra tamanha injustiça e com a Europa (Portugal incluído, para nossa vergonha) a pedir desculpas por crimes que decididamente não cometeu. Ainda iremos a tempo de repor o equilíbrio ou a barbárie vencerá?"

Nuno Pacheco, Público, 8 de Fevereiro de 2005.